Sonia Guimarães: uma professora emérita na luta por diversidade e inclusão nas Ciências

Mulher negra, graduada em Licenciatura em Ciências na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), com Mestrado em Física Aplicada na Universidade de São Paulo (USP), seguido de especialização em Química e Tecnologia dos Materiais no Consiglio Nazionale delle Ricerche, na Itália, e com Doutorado em Materiais Eletrônicos na Universidade de Manchester, Inglaterra. Esse é o currículo de Sonia Guimarães, referência na luta pela inclusão nas Ciências Exatas.

Como primeira mulher negra a obter um doutorado em Física no Brasil, Sonia enfrentou imensos desafios ao longo de sua carreira, mas sempre se manteve firme em seu compromisso com a educação e a promoção da diversidade no ambiente acadêmico. A experiência e a atuação no ITA refletem não apenas sua excelência acadêmica, mas também sua visão transformadora, que busca inspirar e abrir portas para futuras gerações de cientistas, especialmente mulheres e estudantes de origens mais vulneráveis.

Na entrevista abaixo ela compartilha sua luta e suas reflexões sobre a importância da inclusão e da equidade no ensino superior. Seu relato corajoso e perseverante torna-se uma referência para muitos estudantes e profissionais.

 

Em 2023, a professora Sonia foi condecorada
pela Força Aérea Brasileira (FAB) com a
Medalha Santos Dumont de Honra ao Mérito
por seus 30 anos de atuação no ITA
(foto: Dalila Dalprat / Divulgação)

 

ITAEx – A senhora é a primeira mulher negra a obter um doutorado em Física no Brasil. Qual foi o impacto dessa trajetória na sua atuação como professora no ITA?
Sonia Guimarães – Meu trabalho como professora é motivado pela inclusão, especialmente de meninas negras nas áreas de Ciências Exatas. Tenho promovido experiências de aprendizado com alunos do ensino médio público em laboratório, buscando inspirar esses jovens a acreditarem em suas possibilidades, embora ainda enfrento dificuldades em atrair meninas para as exatas. Mas continuo firme na luta por mais inclusão e igualdade.

ITAEx – Quais foram os principais desafios que enfrentou ao longo dessa trajetória e como esses desafios moldaram sua visão sobre a importância da diversidade no ITA?
SG – Apesar das dificuldades que enfrentei por ser mulher e negra, nunca me calei, e continuo incentivando jovens de todas as etnias a não desistirem de seus sonhos, afirmando que é possível alcançar qualquer objetivo.

ITAEx – Como suas pesquisas e inovações podem impactar a formação de futuras gerações de cientistas, especialmente mulheres?
SG – Enquanto estive dedicada ao Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), fiz um trabalho pioneiro, desenvolvido para uso bélico, especificamente em sistemas de mísseis. Embora inovadora, a pesquisa não tem aplicação cotidiana, sendo voltada para a segurança nacional. O sensor é utilizado para orientar mísseis na identificação e localização de aviões, e sua tecnologia é mantida em segredo, sendo de uso exclusivo do Brasil.
Embora não esteja mais liderando projetos, estou começando uma nova área de pesquisa, envolvendo grafeno.
Mas sinto-me realizada ao saber que continuo a impactar positivamente estudantes, como o caso de uma ex-aluna, uma jovem negra de origem humilde, que entrou no ITA inspirada por minhas palestras e falas de motivação. Isso sinaliza que meu trabalho está fazendo diferença.

ITAEx – O ITA está implementando ações através do Grupo de Trabalho de Equidade de Gênero. Que mudanças já observou e como acredita que essas ações podem transformar a cultura da instituição a longo prazo e o que pode ser feito para aumentar a participação feminina e criar um ambiente mais acolhedor para as alunas?
SG – Fico entusiasmada com essa criação de grupos de equidade de gênero e defendo a criação de um outro, focado em equidade racial, especialmente para garantir que pessoas de diferentes etnias sejam bem-vindas no ITA. Acredito ser fundamental incentivar meninas desde pequenas a se interessarem por áreas como Engenharia e Ciências Exatas, sem limitar suas escolhas com a ideia de que “isso é coisa de menino”. E reforço a importância de um ensino inclusivo, onde as dificuldades sejam tratadas com paciência e metodologias adaptadas, pois a falta de aprendizado muitas vezes não é falta de capacidade, mas uma questão de abordagem pedagógica. Destaco o impacto positivo das visitas de alunos do ensino médio ao ITA, onde se mostraram curiosos e engajados nos experimentos, reforçando a ideia de que todos têm potencial, independentemente de gênero ou origem.

ITAEx – Além do seu trabalho como professora e pesquisadora, também é ativista na luta contra o racismo e a discriminação de gênero. Que iniciativas considera essenciais para promover a inclusão de negros e negras na ciência e na academia?
SG – Defendo a importância de incluir pessoas negras na academia e combater estigmas raciais. Critico, sim, as falas que desvalorizam a capacidade e a inteligência delas, como a ideia de que ‘não há cientistas negros’. A ciência tem raízes na África, onde já existiam avanços médicos e tecnológicos antes da chegada dos europeus. Lamento o impacto negativo dessas ideias na autoestima e na confiança das pessoas negras, tanto na academia quanto na sociedade em geral, onde enfrentamos racismo, violência e discriminação. Vamos celebrar o sucesso das meninas negras que conseguem concluir doutorados, mas também alerto para a dificuldade que elas enfrentam ao procurar empregos, para a discriminação racial que as impede de alcançar posições elevadas, mesmo com qualificação superior. Mudanças precisam ser feitas para garantir que essas meninas negras tenham as mesmas oportunidades.

ITAEx – Como vê a evolução da presença feminina nas Ciências Exatas desde sua entrada no ITA até os dias atuais? Que mudanças ainda gostaria de ver?
SG – Uma das principais barreiras para a inclusão de meninas, especialmente negras, nas áreas de ciências exatas é o Cálculo 1. Apesar de esforços para incentivá-las a entrar nas exatas, muitas desistem no primeiro semestre, pois não conseguem passar nessa disciplina fundamental. Acredito que professores de matemática devam repensar a abordagem do ensino de Cálculo 1, pois essa dificuldade inicial muitas vezes leva as alunas a abandonarem o curso, limitando suas oportunidades na área.

ITAEx – Que recomendação daria para jovens estudantes que aspiram a seguir carreiras nas Ciências Exatas?
SG – As ciências exatas precisam de mais diversidade, especialmente com a inclusão de meninas negras. Há falta de interesse nas áreas de Física, Química e Matemática, especialmente no ensino médio, onde essas disciplinas estão sendo cada vez mais negligenciadas. Sem profissionais qualificados, as engenharias e outras áreas importantes podem ser comprometidas no futuro. Como presidente da Comissão de Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão da Sociedade Brasileira de Física, estou ciente desse problema crescente, mas lamento que, apesar de ações e discussões sobre o tema, não há uma preocupação real em resolver a situação. Sinto que há uma falta de comprometimento em abordar esses desafios, o que me preocupa profundamente.

ITAEx – A senhora tem se envolvido em projetos voltados para a inclusão de estudantes de áreas carentes. Como essa atuação se conecta com sua missão de promover equidade no ambiente acadêmico?
SG – Tenho atuado com estudantes economicamente vulneráveis e destaco que esses alunos, por vivenciarem realidades difíceis, tendem a pesquisar questões mais imediatas e relevantes para o seu cotidiano, ao contrário de muitos pesquisadores que focam em áreas distantes da realidade brasileira. Há uma falta de atenção para problemas urgentes, como o acesso à água, e aponto que os estudantes de classes mais baixas têm uma visão mais prática e voltada para soluções concretas. Cito aqui o exemplo do filme ‘O menino que descobriu o vento’ – baseado em uma história real que aconteceu em Maláui, país da África Oriental – inspirado por um livro de ciências, onde um garoto constrói uma turbina eólica para salvar sua aldeia da fome. Então, a ciência se torna mais relevante quando é direcionada a resolver os desafios reais da sociedade. Acredito que quando pessoas de todas as classes sociais se envolverem na ciência, ela crescerá e terá um impacto maior.

ITAEx – Como vê a importância da interseccionalidade na luta por igualdade de oportunidades no ambiente científico?
SG – É importantíssima para promover inclusão, diversidade e mudanças sociais no Brasil. A falta de representatividade e compromisso de políticos eleitos, que, apesar de terem o apoio de eleitores negros e economicamente vulneráveis, não os representam de fato. A interseccionalidade é fundamental também para o progresso da ciência e da inovação, que hoje são muito excludentes. Embora seja uma pessoa otimista, vejo que, atualmente, a interseccionalidade ainda é ausente nas decisões e ações, mas espero que isso mude no futuro, pois acredito ser a chave para avançar.

ITAEx – Como vê o papel da tecnologia na transformação dos sistemas educacionais, especialmente nas áreas de Exatas, onde atua?
SG – O que me preocupa é a falta de acesso à internet nas escolas públicas, o que dificulta o uso de tecnologias e inovações no ensino. Muitas instituições educacionais não têm e as que têm enfrentam problemas como conexão limitada ou falhas frequentes. Apesar da discussão sobre a educação durante a pandemia, não houve esforços significativos para melhorar a infraestrutura nesses espaços. Participei na preparação para o G20 sobre inteligência artificial nas escolas, mas questiono como a tecnologia pode ser aplicada sem o básico, como internet e computadores de qualidade. Enquanto essas questões não forem resolvidas, a educação e a tecnologia estarão desconectadas, e ninguém parece se preocupar com isso.

ITAEx – A formação de professores pode ser aprimorada para integrar melhor as tecnologias digitais no ensino de Física e outras disciplinas?
SG – Embora a formação de professores nas universidades, como no ITA, seja avançada, a integração das tecnologias digitais no ensino de Física e outras disciplinas precisa ser aprimorada, especialmente nas escolas públicas. Questiono como as escolas de ensino médio lidam com a tecnologia, já que os estudantes sabem usar celulares, mas não têm ensino adequado de Física nem acesso a tecnologias digitais no aprendizado. Enquanto instituições como o ITA e a USP estão mais digitalizadas, a maioria das universidades no Brasil ainda está muito atrás, o que me preocupa em relação à disparidade no ensino em todo o País.

ITAEx – Em sua opinião, quais são os principais desafios que as instituições de ensino, como o ITA, enfrentam ao implementar novas tecnologias no processo educativo?
SG – O ITA não enfrenta dificuldades para integrar a tecnologia no processo educacional, pois é amplamente utilizada em todos os cursos, incluindo nas humanidades, onde estão começando a aplicar o conceito de “tecnologia e sociedade”. Aqui a tecnologia é bem implementada e está presente em praticamente todas as áreas do ensino no ITA.

ITAEx – A primeira infância é uma fase fundamental para o desenvolvimento educacional. Qual a importância de iniciativas que focam na educação dessa faixa etária em relação à formação de futuros cientistas e engenheiros?
SG – É nessa fase, quando o cérebro está se formando, que a curiosidade das crianças é intensa. Desde pequena, fui incentivada a buscar respostas por conta própria, usando a enciclopédia, o que ajudou a desenvolver minha autonomia na aprendizagem. Ao invés de limitar as curiosidades das crianças, é fundamental incentivá-las, incluindo meninas, a explorar áreas como a computação. E compartilho com vocês uma experiência recente, em que crianças do ensino fundamental fizeram muitas perguntas aos meus alunos no ITA, desafiando-os a explicar conceitos complexos de forma simples. Esse tipo de interação é valioso e pode estimular o aprendizado desde cedo.

ITAEx – Diante da rápida mudança tecnológica e de globalização, acredita que o ITA pode se adaptar para preparar seus alunos para as novas demandas do mercado de trabalho?
SG – O ITA é uma das principais instituições formadoras de engenheiros do futuro, oferecendo oportunidades excepcionais para seus alunos. O programa de diploma duplo é um exemplo disso, onde os estudantes podem passar os dois últimos anos em universidades internacionais, como na França. Além disso, a Escola tem um centro de inovação com laboratórios bem equipados para o desenvolvimento de ideias e inovações, e também prepara seus alunos para as rápidas mudanças tecnológicas e de globalização, com excelentes oportunidades de colocação profissional, incluindo áreas como finanças e investimentos, com ex-alunos trabalhando na bolsa de valores de Nova Iorque.

ITAEx – De que maneira a tecnologia pode contribuir para inclusão e diversidade no ensino de ciências exatas? e quais são algumas práticas inovadoras que poderiam ser adotadas no ITA para transformar a experiência educacional dos alunos, especialmente em um contexto de inclusão e equidade?
SG – A tecnologia é um dos maiores precursores para que as ciências exatas se desenvolvam. Destaco aqui o papel fundamental da tecnologia no desenvolvimento das ciências exatas, dando como exemplo a visita de estudantes do ensino médio e fundamental ao ITA, onde aprenderam a usar o aplicativo Tracker, que permite analisar experimentos de movimento, gerando gráficos e equações, facilitando o entendimento sobre sua aplicação.
Os alunos do ITA estão muito familiarizados com tecnologias avançadas e podem utilizá-las com facilidade, embora nem sempre atendam às exigências tradicionais de escrita acadêmica. O ITA está à frente em termos de inovações tecnológicas, como no desenvolvimento de foguetes e drones, com alunos frequentemente se destacando em projetos práticos.

ITAEx – Receber o prêmio de ‘Professora Emérita Guerreira da Educação Ruy Mesquita’ foi um marco importante. Como essa conquista impactou sua visão sobre o papel das mulheres negras na educação e na ciência?
SG – Recebi com muito orgulho o reconhecimento pelo Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) e pelo jornal O Estado de SP. Nenhum professor do ITA tem esse prêmio, por enquanto. Eu sou a primeira negra e a quarta de seis mulheres a ganhar. Ser ‘professora emérita’ significa que mereci o prêmio; ser ‘guerreira da educação’, que trabalhei para que ela chegasse para todos.

ITAEx – Que mensagem gostaria de deixar para jovens estudantes negros e negras que enfrentam desafios semelhantes aos que a senhora enfrentou em sua trajetória acadêmica?
SG – Não acreditem em quem disser que vocês não são inteligentes o suficiente ou que não podem ser cientistas. Minha experiência de superação é um exemplo de que, apesar das dificuldades e do racismo, é possível alcançar grandes conquistas. Incentivo vocês a persistirem, aprenderem com os erros e continuarem tentando até obterem sucesso. A chave é não desistir e lembrar que, com esforço, tudo é possível.

ITAEx – Qual o seu envolvimento em trabalho social voluntário?
SG – Tenho incentivado meninas e meninos negros a se interessarem pelas ciências exatas, e minhas ações têm impacto em todo o País. Trabalho com diversas ONGs nesse sentido, mostrando que o estímulo à educação é vasto e crescente.

ITAEx – O que a nossa Associação tem facilitado ou proporcionado ao seu trabalho no ITA?
SG – O apoio da ITAEx tem sido fundamental e muito positivo. Tenho organizado algumas visitas de alunos ao Instituto de Pesquisa e Ensaios em Voo (IPEV), único na América Latina que proporciona experiência prática com helicópteros e naves, além de interações com pilotos, e nesse projeto, contamos com o apoio da ITAEx. Em outros eventos, como o campeonato de helicópteros e o concurso de bumerangues, a Associação auxilia com recursos e infraestrutura, tornando as atividades ainda mais especiais e estimulantes para os estudantes.
Considero a ITAEx essencial para o desenvolvimento acadêmico dos estudantes do ITA, oferecendo recursos e apoiando financeiramente diversas iniciativas acadêmicas – sendo fundamental para o avanço dessas atividades e práticas dos alunos.

Categorias de postagens

Siga a ITAEX nas mídias sociais

× Fale no WhatsApp!