A Educação como Propósito: A História de Daniel Lavouras, o Bagual

Engenheiro aeronáutico formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA em 1994, Daniel Lavouras — mais conhecido como Bagual — é um exemplo de como a vivência iteana pode extrapolar os limites da sala de aula. Protagonista de iniciativas marcantes dentro e fora do ITA, como o Centro Acadêmico Santos Dumont – CASD, o Triathlon e o Torneio da Semana da Asa, ele transformou sua experiência em uma missão de vida: democratizar o acesso à educação de qualidade.
Criador e mentor de diversas olimpíadas do conhecimento e empreendedor na área educacional, Bagual acredita no poder da autoestima e da Disciplina Consciente como motores de transformação.
Nesta entrevista, ele compartilha aprendizados, desafios e a visão apaixonada de quem segue, todos os dias, lutando por um Brasil onde todos possam aprender, sonhar e vencer.
Boa leitura!

ABERTURA E FORMAÇÃO NO ITA

ITAEx – Ainda como aluno, o senhor teve uma atuação intensa e multifacetada. Como essa vivência no ITA moldou quem se tornou, tanto como educador quanto empreendedor?
Bagual – Meu perfil era muito parecido com o bixo padrão, tímido e cheio de dúvidas, e que chegou no ITA para estudar muito. Acabei descobrindo, muito fruto da insistência de alguns veteranos (e agradeço muito a eles), que poderia render mais em outras atividades do que apenas estudando. E, realmente, considero que é muito pouco, chegar a São José dos Campos como vestibulando e sair “apenas” engenheiro. Passamos cinco longos anos no ITA; obter apenas crescimento intelectual num período altamente fértil da vida seria algum desperdício. Então, sim, eu me envolvi com muitas atividades durante o ITA, isso me tornou um mau aluno, que fez um curso de forma perigosa, mas me abriu portas principalmente para um olhar mais aguçado sobre o que é importante quando se quer mobilizar outras pessoas. Este é o tema central do CASD, e também é o tema central em educação e liderança empresarial. Eu fui feliz no ITA, fiz um curso academicamente apenas razoável, mas foi uma troca, eu considero que cresci em outro espectro de competências.

ITAEx – Durante sua graduação, abriu mão do tradicional estágio do quinto ano para presidir o CASD, ajudou a recuperar o Observatório Astronômico e participou da criação do Torneio da Semana da Asa e do Triathlon do ITA. De onde vinha tanta iniciativa? Como enxerga, hoje, o papel do aluno na construção do ambiente acadêmico?
Bagual – Não era o plano inicial me envolver em tantas frentes. Mas, como na vida, se você demonstra voluntariedade, acaba sendo pinçado pelos que estão acima de você para abraçar a causa também. Nossas causas eram nobres, e eu fui muito bem “treinado” pelos meus veteranos das turmas 89, 90, 91 e 92. Conclusão, eu me envolvi e os sucedi nestas causas.

Bagual na chegada da Volta Olímpica do CTA – VOCTA |  1994. Tradicionalmente, o quinto ano corria vestido de mulher

Na largada da VOCTA | 1994, ao lado do Reitor Euclides Carvalho Fernandes

Torcida do ITA no Torneio InterEng de Lins

Time de Handball do ITA

No H8 com o cartaz do II Torneio da Semana da Asa. Nunca houve um primeiro, o H8 conhece a lenda

Para mim, chegamos ao ITA com uma capacidade lógico-analítica já acima da média, devido ao nosso esforço anterior. Apenas desenvolver mais ainda este lado seria uma imensa perda de oportunidade. E quem pode despertar e catalisar novas habilidades, digamos ortogonais à capacidade técnica, é o H8. O ambiente do H8 é o tesouro do ITA. É o cadinho que verdadeiramente nos faz crescer como pessoas, desenvolver caráter, cidadania, responsabilidade coletiva etc.

DISCIPLINA CONSCIENTE E CIDADANIA

ITAEx – O senhor foi responsável por disciplinas como “Cidadania” e sempre defendeu o resgate da autoestima como caminho para o aprendizado. Como conecta isso ao conceito de Disciplina Consciente?
Bagual – Quando não acreditamos no nosso potencial, e não temos respeito pelo que somos, aceitamos a pecha de sermos incapazes, e cogitamos a transgressão às regras para transpor barreiras que julgamos não ter capacidade para derrubar. Não temos vergonha de fazer algo errado, não há zelo pela reputação, não consideramos que somos referência para alguém.

Apartamento 227 – H8-B

Na medida em que desenvolvemos a autoestima, ela se torna nossa fortaleza, nossa blindagem e, a o mesmo tempo, o que mais nos dá orgulho. A baixa autoestima nos ambientes escolares é o problema nevrálgico da Educação básica no Brasil, ela é a mais importante.

No Observatório Astronômico do ITA

Não há ferramenta, por mais maravilhosa que seja, que ajude um ser humano a aprender quando ele não acredita que pode realmente aprender. Há uma correlação forte entre a autoestima e a Disciplina Consciente, algo que se pratica não porque ela separa o certo do errado, mas porque ela permeia um ambiente melhor, um ambiente de confiança.

Lançamento do carimbo comemorativo do CASD na Exposição Filatélica da Semana da Asa | 1994 –  Na foto, Bagual e o Reitor Euclides Carvalho Fernandes

Quando se fala em DC, para mim, o mais legal é a DC extra-acadêmica. É o que se faz no H8. Não adianta fazer as provas mantendo o sigilo e o rigor, e depois assaltar a geladeira do vizinho no H8. Esta seria uma DC imposta via regra, se respeita onde há maior risco de punição. Este não é o verdadeiro objetivo de disseminar o conceito de DC. Ele é muitíssimo maior. Quando se vive num ambiente de DC, isso não é conquistado via pressão de regras, na verdade a DC é uma atitude comportamental lógica. Da mesma forma, no cenário das escolas públicas Brasil afora, caso consigamos um ambiente escolar com um mínimo de autoestima, então o terreno está fértil para que o aprendizado floresça.

ITAEx – Na sua visão, quais são os maiores desafios para formar jovens com consciência, responsabilidade e pertencimento hoje? E como isso dialoga com o modelo de ensino que defende?
Bagual – Se minha crença é que todos podem aprender (e ela é!), que todas as dificuldades podem ser superadas mediante comprometimento e dedicação, então, além do professor ser um exemplo disso, ele precisa comunicar isso ”impiedosamente” em todas as suas atitudes. Eu usei o termo “impiedosamente” (forte) porque o aluno com baixa autoestima está na sua zona de conforto. Ele se considera quase que agredido quando alguém simplesmente quer que ele passe a acreditar no seu potencial. É cruel, mas com dez anos, muitas de nossas crianças já perderam a capacidade de sonhar e perseverar em busca dos seus sonhos, e já aceitaram a ideia de que nunca serão o que um dia imaginaram. É preciso literalmente quebrar esta espiral negativa para ter alguma perspectiva. Não é fácil.
O educador precisa demonstrar, sem vacilar em nenhum momento (!), no olhar, que ele acredita em seus estudantes, em todos eles, pois seria fácil separar os bons, e começar a trabalhar apenas com eles. Quando se consegue resgatar um desses alunos que estavam já sem rumo, então se conquista um argumento de força irrefutável para converter todo o restante do ambiente escolar, e aí as coisas fluem. Todos aprendem, todos desenvolvem consciência, responsabilidade e pertencimento. E o próprio ambiente corrige seus rumos, e resgata mais facilmente os que se desviam da rota.

EDUCAÇÃO E OLIMPÍADAS DO CONHECIMENTO

ITAEx – O senhor foi criador e/ou mentor de algumas das maiores olimpíadas do País — OBA, OBB, OBF, entre outras — e recentemente da OBICT, que já ultrapassou um milhão de participantes. Qual é o segredo para mobilizar tantos estudantes e professores em um Brasil tão diverso?
Bagual – O segredo é justamente perceber que é preciso realmente entender a realidade e ajustar a iniciativa para atingir o aluno médio do sistema de ensino brasileiro. É lá que se pode estender a mão e convidá-lo a uma jornada legal.

Ter uma primeira etapa adequada não deprecia as metas finais de uma Olimpíada, mas, muito pelo contrário, passamos a ter a ousadia de acreditar que todos podem ganhar as medalhas. Todos! É preciso dar chance a todos, acreditar em todos. Assim, Olimpíadas devem ser faseadas, e o foco das fases iniciais deve ser no mais importante: engajamento. Tudo deve ser pensado para engajar um jovem que lhe dará pouquíssima chance de fazer isso. É algo que tem que ser feito com carinho e meticulosidade.

Bagual com a equipe do Brasil na III Olimpíada Internacional de Astronomia | 1998

ITAEx – Que tipo de transformação mais te emociona ao ver o impacto das olimpíadas na vida dos alunos?
Bagual
 – Os melhores casos não são os midiáticos, aqueles de estudantes que, por se envolverem com Olimpíadas, acabaram indo estudar no ITA ou em outras faculdades relevantes do Brasil e do exterior. Os melhores impactos, que mais orgulham quem trabalha com isso, são aqueles em que se mudou a realidade de um único estudante que estava no fundo do poço. Imagine, hipoteticamente, um estudante que não sabe quem é seu pai, que vivencia diariamente violência doméstica, que é colocado no sinal de trânsito para arrecadar algum dinheiro para que seu padrasto gaste com bebida; ou outro aluno que está no ensino médio, mas que ainda não sabe somar frações, que faz apenas duas refeições por dia, que não pode ir a uma aula extra porque não tem dinheiro para o ônibus. Estas situações teóricas são a realidade de muitos, quiçá da maioria. Quando se consegue que um estudante que enfrenta não apenas uma, mas um conjunto destas hipóteses, suba um degrau, então ressurge todo o poder da força de vontade, da capacidade de superação. A partir de um mero “Parabéns! Você conseguiu, por mérito próprio”, de repente não há mais barreira: ele está livre e vai até onde quiser. Olhando para trás, o que mais me orgulha enquanto professor foram das vezes em que consegui de alguma forma contribuir para este tipo de mudança de realidade, para um indivíduo, ou uma coletividade.

ITAEx – O senhor costuma dizer que as olimpíadas são uma política pública de baixo custo e alto impacto. Como foi defender essa ideia e qual a receptividade no Ministério da Ciência e Tecnologia?
Bagual – Como todo o projeto, quando a escala aumenta, as variáveis se tornam bem mais complexas, e começam a ficar muito mais robustas. Mexer com uma política pública em escala nacional é um imenso desafio, uma causa extremamente nobre. Fiz o que eu pude e defendi ardorosamente as convicções que minha experiência de vida como educador me ensinou. Tentei avançar, mas é muito difícil.

   

 

Há muito a se fazer, é preciso muita energia, muita gente. Não é algo que se vai conseguir num piscar de olhos. Mas continuo defendendo que há estratégias de baixo custo – e entre elas certamente estão as Olimpíadas – que poderiam ajudar a transformar o ambiente escolar. E que sem este ambiente, todo o investimento em tecnologia, treinamento e recursos se torna muito menos efetivo, muitas vezes inócuo. Logo, a prioridade deveria ser transformar o ambiente.

EMPREENDEDORISMO E O SITEMA ELITE

ITAEx – O Sistema Elite de Ensino marcou época em vários estados e foi fundamental na inclusão de talentos em processos seletivos de alta exigência. Como nasceu essa iniciativa e que legado ela deixa?
Bagual – O Elite num primeiro momento reuniu iteanos que trabalhavam com educação básica em várias cidades e regiões do País. Criamos uma rede de cursinhos, de escolas. Acreditávamos que o compartilhamento de estratégias bem-sucedidas e a divisão de tarefas secundárias nos tornariam mais fortes.

Em Belém, com os alunos do Colégio Titular, um dos embriões do Sistema Elite de Ensino, na abertura dos jogos estudantis paraenses

Chegamos a ter mais de 30 iteanos trabalhando entre gestores de alguma unidade do Elite. Nosso grande tesouro é que o Elite não tinha sotaque. Não havia uma matriz. Éramos respeitados onde estávamos. Se havia um Elite em Manaus, então o trabalho lá era respeitado. Eles não eram uma filial tentando replicar um trabalho, eles eram também protagonistas. O resultado era pulverizado em todo o Brasil. Quando se imagina um sistema de ensino, costuma haver uma matriz, um cérebro. No caso do Elite, realmente havia “transferência de tecnologia”, de know-how. O Elite nasceu do sonho de transformar vidas através da educação. Vários dos mais bem-sucedidos empreendimentos de educação básica do Brasil têm origem, ou forte interseção, com a história do Elite, dentre os quais o GGE, o Bernoulli, o Apogeu, o Fibonacci e o Olimpo. São colegas iteanos colocando toda a sua competência e sua experiência na questão mais crucial para ajudar nosso País e virar a página: Educação básica.

INICIATIVAS ATUAIS E VISÃO DE FUTURO

ITAEx – Recentemente, o senhor tem atuado na Eduspace como Head do Hub Olímpico. O que é esse projeto e quais são seus objetivos?
Bagual – Nosso projeto na Eduspace é trazer o que há de melhor, seja em tecnologia ou em metodologias e abordagens inovadoras, para que todos os estudantes possam aprender mais e melhor. Escala, alcance, qualidade e humanismo são pilares das nossas iniciativas. Nossa visão precede a “sala de aula” em si. Nesse contexto, o esforço engloba o desenvolvimento de estratégias para arrancar um sorriso de um estudante que não mais sorri quando se defronta com qualquer ferramenta que se proponha a ajudá-lo a aprender. Queremos dar parabéns a um estudante que nunca imaginou ao longo de sua vida que receberia um reconhecimento por mérito. Queremos que ele volte a acreditar em si mesmo. É reacender a chama da sua autoestima e fazê-lo sonhar que um destino melhor é possível. Uma revolução da educação básica passa, necessariamente, por esse resgate.

ITAEx – O que ainda te move depois de tanto tempo dedicando sua energia à educação? E o que ainda quer construir?
Bagual – Tenho muito orgulho de ter me tornado um “engenheiro educacional”. Após um árduo dia de trabalho, é justamente o simples e aleatório retorno de um estudante, um pai, uma mãe, um professor, um gestor escolar que me fará acordar no outro dia com mais vontade ainda de fazer, revigorado. Muitas vezes, do nada, estou em algum lugar, e aparece alguém que eu não reconheço, contando que é um ex-aluno, às vezes de 15, 20 anos atrás. Eu ouço um pouco de sua história, e me sinto, de forma audaciosa e ao mesmo tempo ingênua, responsável por uma pequena parte de tudo de bom que ele já fez e conquistou. É um modo de espalhar energia boa pelo mundo.
Vou continuar fazendo isso. É simples, não parece muito surpreendente e inovador. Mas é extremamente necessário. É decisivo para o nosso futuro. Parece muita pretensão, mas é como eu enxergo.

ITA, PERTENCIMENTO E LEGADO

ITAEx – O que significa, para o senhor, ser um iteano? O “Bagual” de hoje ainda carrega algo do bixo dos anos 1990?
Bagual – Ser um iteano me faz fazer parte de um grupo de pessoas que eu respeito e que me inspira das mais diversas formas. E que me dá muito orgulho. Bagual se tornou minha marca, e eu carrego comigo, e renovo diariamente todo o idealismo que o bixo Bagual desenvolveu no H8.

ITAEx – Que conselho deixaria para os alunos do ITA — especialmente para aqueles que sentem que poderiam contribuir com mais do que boas notas?
Bagual – Não apenas cursem o ITA, vivam o ITA, respirem o H8. Conheçam as pessoas, se permitam aprender mais do que Ciências Exatas.

ITAEx – E aos ex-alunos, como incentivaria a retribuir ao ITA todo o aprendizado em prol dos novos alunos?
Bagual
 – Recentemente os ex-alunos têm feito muito. A AEITA tem se reciclado, está bem mais forte. E nasceu, graças ao vigor do Hexavirato da T61, a ITAEx, que eu tive o privilégio de acompanhar, pois a gestação foi em uma diretoria da AEITA da qual eu pertencia.

No Centenário da Independência | MCTI – 1992 | com Sócios Mirins da AEITA

A ITAEx está cada vez mais engajando ex-alunos a participar mais do ITA. Com vários graus de envolvimento, esta é uma forma absolutamente certeira de contribuir muito com a Escola, e, assim, com a sociedade como um todo.
Esperamos que cada vez mais iteanos possam curtir a sensação de contribuir para que o ITA continue a pavimentar mais histórias bonitas.

Categorias de postagens

Siga a ITAEX nas mídias sociais

× Fale no WhatsApp!