Ruy Amparo: A Força da Disciplina Consciente na Aviação e na Liderança

Na série Disciplina Consciente do ITA, temos o privilégio de ouvir grandes nomes que, ao longo de suas carreiras, exemplificaram a importância dessa prática, tanto no campo técnico quanto ético. Hoje, conversamos com Ruy Antônio Mendes Amparo (T82), ex-vice-presidente da TAM e um dos profissionais mais respeitados no setor de aviação.

Formado em Engenharia Eletrônica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA, Ruy compartilha como a Disciplina Consciente foi fundamental não só para sua formação, mas também para os desafios que enfrentou ao longo de sua trajetória, desde a gestão de equipes de alta performance até a execução de grandes projetos na aviação.

Em sua carreira, Ruy aplicou os valores aprendidos no ITA para transformar situações de alta pressão em grandes sucessos. Sua visão sobre a integração entre técnica e ética, e como isso impacta as decisões críticas, é uma inspiração para todos que buscam excelência e comprometimento com seus valores em qualquer área profissional.

ENTREVISTA

ITAEx – A Disciplina Consciente do ITA tem um enfoque muito forte em desenvolvimento de habilidades técnicas e éticas. Como esses princípios moldaram a forma como gerenciou equipes e projetos ao longo de sua carreira na aviação, como na Embraer e LATAM?

Ruy – Considero a Disciplina Consciente (DC) uma síntese de valores que se somaram àqueles que os (então) jovens como eu trouxeram de suas formações familiares, e que o tempo no ITA foi importante para que se consolidassem dentro de horizontes profissionais. Éramos literalmente garotos que aprenderam tanto os profundos conceitos técnicos e de gestão que embasaram nossas carreiras futuras quanto a importância de que desafios fossem sempre vencidos, usando caminhos éticos e morais fortes, ou seja, sempre com muito esforço, planejamento e dedicação. E a DC aqui foi importante para que o caminho para isto fosse sempre – ainda que com sofrimento, noites mal dormidas, fins de semana mergulhados em livros ou apostilas – pautado por este conjunto de valores.
Tive, como todos, fases distintas na evolução da carreira. Meus primeiros anos de Embraer ainda tiveram a felicidade de ter a liderança e o comando de iteanos de altíssimo quilate técnico e ético – sem parecer arrogante, quase um pleonasmo -, que também nos serviram de exemplo, em todos os níveis. Poderia citar vários, mas Ozires Silva (T62) e nosso primeiro coordenador na Aeroelasticidade, Mauro Kamyama (T79), mais José Renato de Oliveira (T71), chefe da aerodinâmica, foram líderes que, junto com vários outros, pelo exemplo e orientações, solidificaram e nos mostraram como usar os valores que tínhamos absorvido no ITA dentro de uma empresa.
Anos mais tarde procurei, tanto na TAM, hoje LATAM, na TAM Executiva e na Associação Brasileira de Empresas Aéreas – ABEAR, usar o exemplo destes grandes profissionais e de outros que tive a felicidade de encontrar pelo caminho, como por exemplo outro grande iteano, Arthur Araújo (T54), que depois de aposentado da Rolls-Royce veio para a TAM e nos deixou muitos ensinamentos.
Uma empresa de aviação comercial só tem condições de operar e crescer se tem processos sólidos e capacidade de criar e executar projetos de modo eficiente. Em ambas as situações há grandes profissionais, bem treinados e com capacidade de executar o que foi desenhado ou pactuado. Isto significa que temos a DC em ação o tempo todo. Ou seja, mesmo com todos os mecanismos de auditoria e controle, muitas entregas, seja na operação, em segurança ou em projetos, só acontecem pelo fiel respeito aos princípios acordados. Um piloto, por exemplo, ao decidir pela segurança ao não assumir nenhum risco e se dirigir a um aeroporto alternado ante a uma situação meteorológica inadequada, mesmo perdendo algum compromisso pessoal no seu destino está usando a Disciplina Consciente, de certa forma.
Claro que é sempre necessário que a equipe, seja de projetos ou operacional, tenha sempre valores comuns fortes, alinhados aos padrões éticos e de cultura da empresa em que se está. E aqui, vejam o quão importante é ter com você profissionais que já guardam estes valores como princípio. Os rigores do ITA e seus valores mais caros, como a Disciplina Consciente, tornam seus engenheiros muito demandados por qualquer empresa.

ITAEx – O ITA é conhecido por incentivar a autodisciplina e a busca pela excelência. Em sua trajetória profissional, como conseguiu aplicar essas características para alcançar resultados de longo prazo, tanto na parte técnica quanto na gestão de pessoas e processos?

Ruy –
Uma empresa de aviação trabalha em essência com planos de médio e longo prazos, mas que estão sujeitos a alterações das premissas todo o tempo. Por exemplo, você planeja a compra de algumas dezenas de aeronaves para expansão ou renovação de frota, negócios que facilmente passam da casa de bilhão de dólares, que vão ser entregues em alguns anos à frente. Então, a dedicação e autodisciplina do gestor e de sua equipe têm de ser absurdas, tanto para criar e manter planos com chance alta de sucesso quanto de ter sempre alternativas para alterações fortes nas condições de curto prazo, como flutuações de moeda ou demanda, por exemplo.
Aqui, a busca da excelência tem de ser permanente, ou seja, você não pode nunca estar satisfeito com o nível tecnológico de suas aeronaves, mas ao mesmo tempo tem de ter a autodisciplina, em conjunto com sua equipe, obviamente, de se ater às suas condições básicas de orçamento e visão de demanda, enfim, do caminho escolhido e pactuado com seus acionistas, por exemplo.

Em janeiro de 1982, na CV – em frente ao Palácio de Buckingham

 

 

 

 

 

Na foto abaixo, Ruy com a turma, em frente ao antigo prédio da Aeronáutica,
no ano da formatura (1982)

ITAEx – Durante a implantação do MRO em São Carlos, certamente enfrentou desafios complexos. De que maneira a abordagem da Disciplina Consciente do ITA influenciou suas decisões ao longo do projeto, especialmente em momentos de incerteza ou pressão?

Ruy – Tivemos um teste interessante na implantação do projeto da unidade de manutenção de aeronaves e componentes (MRO, na sigla em Inglês) da então TAM em São Carlos. O fundador da TAM Linhas Aéreas e principal impulsionador do projeto, Comandante Rolim Amaro, faleceu em um acidente nos estágios iniciais de implantação do projeto, em 2001. Essa orfandade, que atingiu a empresa inteira, pelo fato da liderança por ele exercida ser fortíssima, como em várias empresas familiares brasileiras, trouxe a necessidade de todos trabalharem dentro de uma autodisciplina absurda, para garantir a perenidade do negócio. No caso particular do MRO São Carlos, minha equipe e eu nos sentimos de repente como alunos do ITA quando o professor sai da sala em que está acontecendo uma prova difícil. Tínhamos que gerenciar investimentos relativamente altos, com objetivos e entregas bem claros, sempre com transparência, e passando pelas devidas auditorias internas normais, mas essencialmente sozinhos. Aspectos que meus engenheiros e eu não dominávamos, como a gestão ambiental em uma planta industrial situada em ambiente rural, por exemplo, foi aonde a experiência de matérias difíceis que tive de aprender no ITA para seguir em frente na escola ajudaram, e muito! E a DC, de ter tudo feito com compliance e transparência, significou ter uma unidade industrial que já funciona há décadas, e ainda está em contínua evolução.

ITAEx – Na experiência do processo de fusão entre a TAM e a LAN, onde diferentes culturas corporativas se encontraram, acredita que a Disciplina Consciente do ITA ajudou na mediação dessas diferenças e no alinhamento das equipes? E, ainda, quais aspectos da formação no ITA foram essenciais nesse processo?

Ruy – O processo de aquisição da TAM pela LAN, que resultou na LATAM [a antiga TAM Linhas Aéreas hoje é a LATAM Brasil] foi um projeto dos mais interessantes e um belíssimo teste de profissionalismo para todos ao longo dos anos em que levou para ser operacionalizado, principalmente para o lado brasileiro, aonde existia a consciência de que cargos duplicados seriam naturalmente eliminados, então muitos estavam dando o seu melhor para tudo acontecer, mesmo sabendo que não continuariam no barco ao fim do processo.
Aqui nessa situação, a Disciplina Consciente esteve presente em seu estado mais puro, como um aluno que não cola, mesmo sabendo que não está indo bem em uma prova. O que lhe move? A visão de que fazer a coisa certa lhe traz sempre benefícios a longo prazo, e a prova disto é que muitos dos profissionais de alto nível que perderam seus postos no negócio com a LAN se posicionaram em grandes empresas, alguns fora da aviação, do Brasil e do exterior.
Devo colocar que os chilenos foram muito transparentes com a TAM, principalmente nas áreas técnicas. E, no fim, nós, brasileiros, ganhamos um conhecimento enorme sobre este tipo de negócio. Obviamente, não estou dizendo que foi algo que se absorve com felicidade, mas temos de nos recuperar e aprender com todos os revezes.
O paralelo aqui é com os colegas do ITA que foram desligados ou trancados por dificuldades de obter notas, mas não colaram. Muito triste, mas praticamente todos deram a volta por cima, se formaram em boas escolas (ou na turma subsequente) e estão no mercado em postos importantes de diversas áreas. A DC destes colegas os fez passar por uma situação dificílima [o desligamento do ITA] sem perder a dignidade, exatamente como muitos profissionais da TAM trabalharam com DC até o instante de terem de sair da empresa, sabendo que isto aconteceria. Finalizando o raciocínio, é fácil exercitar a DC quando não se está ameaçado, por exemplo em uma prova em que se domina muito bem toda a matéria. A dificuldade nos põe em teste.

Depois de 27 anos de aviação comercial, trabalhou por quase três anos na aviação executiva. “Muito aprendizado!” – declara Ruy Amparo

Na foto abaixo, como diretor de Segurança e Operações de voo da  ABEAR, visitando o hangar da LATAM em Guarulhos

ITAEx – Como ex-aluno do ITA, o senhor tem uma visão única sobre a importância da DC na formação de líderes. O que daria para os estudantes de hoje sobre como equilibrar técnica, ética e disciplina em suas futuras carreiras profissionais, especialmente em um setor tão dinâmico como o da aviação?

Ruy – Creio que o primeiro conselho é entender que qualquer carreira de sucesso nasce em um alicerce de muito esforço. Portanto, saber quais rumos podem ser tomados [em se tratando de quem está estudando – sempre há mais de um, mesmo dentro de uma mesma área – a aviação, por exemplo, proporciona muitas possibilidades de carreira, entre acadêmica, gestão, técnicas diversas, comercial etc.], e buscar em publicações ou com profissionais mais experientes, por exemplo, o máximo possível de informações sobre o contexto de cada caminho, dificuldades e recompensas, riscos e oportunidades. Partindo disto, a formação técnica e de soft skills, tanto na faculdade quanto em atividades paralelas, em um nível bem alto é vital. Obviamente, que este esforço exige disciplina e consciência de onde se quer chegar. Por exemplo, um aluno que, para além da grade curricular mínima, escolhe fazer cursos optativos em sua área de preferência, além de buscar experiência em projetos ao participar de atividades como a AeroDesign, com certeza precisa de disciplina, força de vontade para acumular toda a carga adicional, mas tem de fazê-lo dentro dos seus limites, inclusive de tempo e esforço físico, para que tenha resultados. Aqui também entra a ética e os valores morais. Estar apenas presente ou não exercer a Disciplina Consciente nesta travessia não só não tem valor como não colabora em nada nesta formação.
Isto vale para a aviação, aonde “fazer bem feito sua função” pode significar a diferença em ter segurança ou não. Ou, pensando no negócio, ter eficiência e perenidade da empresa ou não.

ITAEx – Sobre a importância da segurança jurídica e regulatória no setor aéreo e a relação da Disciplina Consciente do ITA, que busca sempre a integridade nas práticas, como esse foco na ética e na responsabilidade influenciou sua maneira de lidar com desafios regulatórios e decisões críticas ao longo da sua carreira?

Ruy – Um dos fatores mais fortes na redução dos acidentes na aviação comercial mundial, Brasil inclusive,  foi a evolução da regulação em um setor já intensamente regulado, e a grande padronização das grandes agências aeronáuticas [Agência Nacional de Aviação Civil – Anac no Brasil, Federal Aviation Administration – FAA, nos Estados Unidos; European Union Aviation Safety Agency – EASA para os países europeus, entre outras] em torno das normas e regulamentos que regem os procedimentos e controles operacionais de navegação, manutenção, pilotagem, supply chain e outros, e de segurança que se impõe às empresas e seus funcionários.
Uma boa regulação, no entanto, não substitui o profissionalismo em sua aplicação. Os mecanismos de auditorias e garantia de qualidade independentes, internos às empresas, todos os exigentes certificados e homologações não são suficientes se os profissionais envolvidos no dia a dia da operação, como pilotos, engenheiros [que comandam, entre outras áreas, o coração do controle da execução da manutenção], técnicos, inspetores de security, enfim, todos os que atuam em áreas diretamente envolvidas em segurança operacional não atuarem usando o tempo todo a Disciplina Consciente, ou seja, seguindo os procedimentos, não pelo fato de poderem sofrer sanções em caso de desvios de conduta, mas porque é o certo a fazer.

“Hoje, não voo tanto quanto antes,
mas ainda tenho este prazer,
mesmo como passageiro!”

Obviamente, do mesmo modo em que a importância da DC no ITA nos foi ensinada por professores, conselheiros e veteranos logo nas primeiras semanas ou dias na Escola, em uma empresa também isto requer treinamento, exemplo por parte de gestores de todos os níveis, comunicação eficiente e engajamento de todos, o tempo todo em torno dos valores éticos, morais, culturais e de compliance que a organização – qualquer uma – tem e quer manter, inclusive explicitando os benefícios para o próprio profissional envolvido.
Quando falamos de regulação, é importante lembrar que as diferentes camadas de exigências para qualquer empresa, e no caso da aviação isto também funciona, devem ser interligadas e complementares. Assim, uma empresa com ações em Bolsa tem requisitos fortíssimos inclusive de governança e compliance, o que é positivo para a segurança operacional. O conceito também é válido para segurança no trabalho, meio ambiente e diversas áreas em que também a regulação tem de ser forte, mas não prescindem de valores como a DC na execução das tarefas do dia a dia de uma organização.

ITAEx – Acredita que a Disciplina Consciente do ITA continua sendo uma base sólida para gerir as relações com parceiros, clientes e equipe, especialmente em um mercado altamente competitivo e técnico?

Ruy – Atuo como consultor na aviação e conselheiro informal para pequenas empresas iniciantes [startups] e considero, hoje, minha missão mais importante ser devolver um pouco à sociedade o muito que me foi propiciado ao longo da carreira, inclusive com ganhos de conhecimento e visão de vida pessoal e empresarial, sendo o ITA parte fundamental disto. A prática da DC é algo que mesmo trabalhos indiretos precisam o tempo todo. Assim como um trabalho de consultoria, que sempre envolve muita pesquisa e análise, por exemplo, pode até investigar e explicitar benchmarkings importantes, mas não pode ser simplesmente copiar soluções de modo irresponsável [e disfarçado de algo sofisticado, como infelizmente acontece]. Ou seja, a mesma “cola” que não é saudável acontecer em um ambiente de estudos também não pode acontecer em qualquer trabalho. A boa notícia é que, no fim, os excelentes profissionais, vindos não só do ITA mas de escolas de graduação e pós, exigentes e com culturas fortes e voltadas para valores éticos são os de maior sucesso, em grande maioria.


Na primeira foto, em visita na Base Aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Ao fundo, o famoso Hangar do Zeppelin; ao lado, na fábrica da Cessna, em 2019

Finalizando, encontramos em bons profissionais e empresas de sucesso a aplicação extensiva da DC – ainda que com outros nomes. Na aviação comercial brasileira isto funciona, ninguém precisa perguntar a um piloto se a aeronave está perfeita para o voo, ou se ele está treinado adequadamente. É a DC gerando um ambiente de confiança!

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